
É importante que comecemos qualquer reflexão sobre racismo no Brasil fazendo uma afirmação dolorosa, porém verdadeira: o Brasil é fruto do racismo e, por essa razão, um país racista. Sua estrutura como nação foi forjada a partir da violência do agente invasor e, por isso, opressor, em detrimento dos que aqui estavam desde sempre – e, para além disso, às custas de pretos e pretas arrancados de seu chão, tirados de seus vínculos, afastados de seus símbolos e negados como humanos, para que funcionassem apenas como mercadorias.
Durante a escravidão negra no Brasil, que durou 350 anos, cerca de 4 milhões de pessoas negras foram sequestradas em África e trazidas até aqui; estima-se que outros 4 milhões de pretos e pretas tenham morrido durante a travessia no Atlântico, acometidos por doenças contraídas nos navios negreiros, sempre em péssimas condições, ou assassinados pelos traficantes. A escravidão foi abolida apenas em 1888, mas não houve a menor preocupação em integrar os pretos à sociedade brasileira, tornando-os marginalizados. Tal processo coincidiu com a imigração de trabalhadores europeus, o que agravou ainda mais o problema, pois o preto era “libertado” e aprisionado a uma situação de miséria igual à anterior, na qual era escravizado. Assim, o preconceito racial e a violência econômica se enraizaram, se mantendo fortes até os dias de hoje.
Por tudo isso, falar sobre racismo numa sociedade como a brasileira é especialmente difícil. Essa história não é contada de maneira ampla e, por essa razão, também não é discutida como deveria. E no meio de toda essa cena, surgiu o futebol: o registro da primeira partida de futebol no Brasil data de abril de 1894, portanto apenas seis anos após a abolição da escravidão como atividade legal no país.
Charles Miller, a quem se atribui o pioneirismo do futebol no Brasil, trouxe da Inglaterra o novo esporte, jogado inicialmente entre trabalhadores dos setores de gás e das estradas de ferro de São Paulo. Como não havia espaço para os pretos recém-libertos em campos de trabalho formais, eles não tinham acesso a essa novidade, que durante décadas foi entendida como um esporte praticado pela elite econômica.
Mas, aos poucos, houve o rompimento com essa lógica racista. O Vasco da Gama, em meados da década de 1920, foi o primeiro clube brasileiro a aceitar pretos e pobres em seu time, sofrendo punições da federação carioca e de clubes rivais por conta disso. Mas a partir desse movimento, outros clubes passaram a seguir o mesmo caminho, cada um a seu tempo, de acordo com as condicionantes sociais, econômicas e históricas de cada clube, de cada cidade, sempre tão particulares – por exemplo, em alguns clubes os negros foram proibidos de jogar até a década de 1950, como no caso do Grêmio.

No entanto, o que poderia ser entendida como a democratização e a popularização de um esporte, também pode ser encarada como uma meia-verdade. Os negros, na sociedade brasileira, continuam relegados a lugares muito bem definidos, seja em cozinhas, em portarias, em canteiros de obras, etc, sendo necessário um esforço muito maior para a superação dessa condição – porque o sucesso individual, para pretos e pobres, significa também o rompimento de toda uma estrutura que não os favorece. E no futebol, isso não é diferente: o negro é reduzido a funções específicas, seja fornecendo seu “pé-de-obra” como jogador, seja como massagista ou roupeiro, no vestiário – e só.
Não há, no Brasil, negros em cargos de comando. Quantos dirigentes negros conhecemos? Quantos técnicos negros obtiveram sucesso em suas carreiras? Ainda que um técnico negro seja campeão, a continuidade do seu trabalho não está garantida. Campeão brasileiro em 2009 pelo Flamengo, o técnico Andrade, demitido no ano seguinte, nunca mais conseguiria assumir um clube de maior expressão no cenário nacional. No mesmo rubro-negro carioca, Jayme de Almeida fora campeão da Copa do Brasil de 2013, mas isso não significou maiores chances na carreira. Hoje, ainda no Flamengo, Jayme é auxiliar de Zé Ricardo, que também era auxiliar e fora efetivado após a demissão de Muricy Ramalho, por problemas de saúde. Ou seja: mesmo campeão três anos antes, e avaliações de trabalho à parte, Jayme viu um auxiliar abaixo dele assumir o comando técnico da equipe principal.
Esse texto não tem a pretensão de reduzir a questão a verdades definitivas, além daquelas que são comprovadamente factuais. Pretende-se, aqui, levantar questões sobre a função do negro no futebol: por que não os vemos em postos de comando? Por que o racismo não é denunciado como se deve e, quando é, não encontra a resposta necessária em direção aos agressores racistas? Por que, em que pese o aumento do volume na voz de segmentos historicamente marginalizados, seguimos sendo um país tão racista? Como isso atinge os meninos pretos e as meninas pretas que começam a viver e também a praticar futebol?
É urgente que se discuta racismo, e é urgente que rompamos com a ideia romantizada de que o futebol é um espaço democrático, aberto a todos e todas. Não, não é. As novas arenas, cada vez mais caras, brancas, assépticas e de clientes ao invés de torcedores, nos mostram isso – e a covardia com a qual tratamos o futebol feminino, por exemplo, idem.
Portanto, discutamos. O futebol é do povo, e assim deve ser em todas as suas esferas, não importa cor, classe, gênero ou condição sexual de quem o pratique ou por ele se apaixone.
Texto: Marcelo David (@marcelod82)
Belo Texto! São questões que precisam ser discutidas e elucidadas sempre.
Não sei se o autor do texto teve acesso à esse material, mas li um artigo uma vez sobre isso e aborda exatamente essa questão. O artigo chama-se “Classe, etnicidade e cor na formação do Futebol Brasileiro” de José Sérgio Leite Lopes (esse artigo está publicado num livro que se chama “Cultura de Classe: identidade e diversidade na formação do Operariado”)
Oi, Rafael! Eu não li esse artigo, mas com toda a certeza vou procurá-lo, parece bem interessante. Agradeço muito pela indicação, e também pelo elogio. Volte (e comente) sempre. Um abraço.
Estou muito feliz de ver textos lúcidos como este permeando não só universidades e círculos militantes específicos sobre a questão racial no Brasil. Ótimas pontuações e questionamentos. Precisamos de um futebol assim como a sociedade como um todo mais democrática, com líderes negros e negras ocupando todos espaços, não só os dedicados historicamente.
Àile, ótimo ponto o seu. É exatamente o que penso: de que adianta uma discussão ficar restrita a espaços acadêmicos e de militância, que acabam se tornando bolhas cada vez mais isoladas? Que cada vez mais gente discuta e se interesse por algo que, no fim das contas, interfere de maneira decisiva (e ruim) na vida de milhões de pessoas. Obrigado, um abraço.
Somente para melhorar a discussão. Te o bangu em 1905 e a Ponte Preta em 1900 com negros nos elencos.
Sim, Diego, e o Inter de Porto Alegre tem relatos nesse sentido também. O Santa Cruz tem, entre seus fundadores, um negro. Enfim, são tantas as histórias… tentaremos abordar todas essas questões em futuros textos, sim? Obrigado pelo comentário, um abraço.
Tanto Grêmio quanto Inter são elitistas e racistas. O ponto que define isso foi que no RS existiam 2 ligas, a de brancos e negros (essa chamada de Liga da canela preta) e que não se misturavam jogadores.
Para se ter outra ideia desse ponto é importante observar que, após um decisão de jogadores da liga da canela preta, os negros resolveram formar um time e pedir filiação a federação gaúcha que permitiu, desde de que todos os demais times aceitassem jogar contra um time de formado por jogadores de cor. A ideia não foi aceita pois o inter foi o único que se negou à inclusão de um time de negros no campeonato.
Belo texto e discussão pontual. É triste dizer isso, mas nosso país só regride nesse quesito, o tal “futebol moderno” é tão surreal ao povo pobre e à sua esmagadora maioria negra, logo o esporte do povo, o povo que sofre.
Obrigado pelo comentário, Ozeias. Vivemos tempos cada vez mais complicados nesse sentido, e não só no futebol, infelizmente. Mas me alivia saber que existe gente indignada com isso. Lutemos juntos. Um abraço.